O Dia Que Gilberto Gil e Jorge Benjor Assombraram Eric Clapton

Gilberto Gil e Jorge Benjor abraçados em um último encontro nos palcos

Imagine uma sala onde estão reunidos alguns dos maiores músicos do planeta. Entre eles, uma lenda britânica do rock observa, atônito, dois brasileiros criando algo que transcende técnica e entra no território do inexplicável. Essa cena realmente aconteceu em 1975 e protagonizou Gilberto Gil e Jorge Ben Jor, dois gênios que criaram uma obra capaz de capturar um momento único de conexão musical. Porém, para entender como o lendário álbum Ogum Xangô nasceu, precisamos voltar alguns anos e atravessar fronteiras políticas e culturais.

Neste artigo, você vai descobrir como o exílio, um festival visionário e uma jam session histórica se entrelaçaram para criar uma das parcerias mais explosivas da música brasileira.

O Retorno do Exílio e os Encontros Musicais

Quando pensamos na parceria entre Gilberto Gil e Jorge Benjor, é impossível ignorar o contexto político que moldou os anos anteriores ao seu surgimento. Em 1973, Gil havia acabado de retornar do exílio imposto pela ditadura militar brasileira. Esse período de afastamento forçado marcou profundamente não apenas sua trajetória pessoal, mas também sua abordagem artística.

Festival Fono 73: Laboratório de Colaborações

Logo após seu retorno, Gil participou do Festival Fono 73, um evento concebido especificamente para promover encontros musicais inovadores. Diferentemente dos festivais competitivos da década anterior, o Fono 73 privilegiava a colaboração sobre a competição. Consequentemente, o festival se tornou um espaço fértil para experimentos que dificilmente aconteceriam em outros contextos.

Foi nesse ambiente que nasceu “Cálice”, composição emblemática criada em parceria com Chico Buarque. Entretanto, outro encontro ocorrido durante o festival teria repercussões igualmente importantes, embora inicialmente menos comentadas. Pela primeira vez, Gilberto Gil e Jorge Benjor dividiam um palco de forma significativa, explorando juntos as possibilidades de suas musicalidades distintas.

Quando Dois Gênios Se Reconhecem

O encontro entre Gilberto Gil e Jorge Benjor no Fono 73 foi além de uma simples apresentação conjunta. Testemunhas descreveram aquele momento como quase espiritual, uma conexão que transcendia o musical e alcançava dimensões místicas. Além disso, ficou evidente para todos os presentes que aquela química não poderia ser desperdiçada.

Naquele palco, a sofisticação harmônica de Gil encontrou o swing inconfundível de Benjor. A Bahia conversava com o Rio de Janeiro através de acordes e ritmos. Portanto, as sementes do que viria a ser a colaboração histórica entre os dois já estavam sendo plantadas, ainda que ninguém soubesse disso naquele momento.

A Jam Session Que Mudou Tudo

Dois anos depois daquele encontro inicial, uma coincidência extraordinária aceleraria o processo. Eric Clapton, já consolidado como uma das maiores referências do rock mundial, programou uma visita ao Brasil em 1975. Porém, o guitarrista britânico não queria apenas se apresentar – desejava interagir com a cena musical brasileira.

O Pedido de Clapton

Clapton solicitou a André Midani, então diretor da gravadora Philips no Brasil, que organizasse um encontro informal com músicos locais. A ideia era simples: reunir alguns artistas para uma jam session despretensiosa, onde pudessem explorar sonoridades e trocar experiências musicais.

Midani montou uma lista impressionante. Além de Clapton, estariam presentes Caetano Veloso, Gilberto Gil e Jorge Ben Jor, Rita Lee, Erasmo Carlos e o britânico Cat Stevens, que também visitava o país. Igualmente importante, o encontro não teria formalidades, hierarquias ou roteiros pré-estabelecidos.

A Roda Que Assustou Uma Lenda

O que aconteceu naquela sessão ultrapassou todas as expectativas. Inicialmente, Clapton, Gil, Stevens e Benjor formaram uma roda no chão, instrumentos em mãos, prontos para improvisar. A atmosfera era de experimentação livre, sem pressões ou compromissos com resultado final.

Entretanto, conforme a interação entre Gilberto Gil e Jorge Benjor se aprofundava, algo extraordinário começou a acontecer. Primeiramente, Cat Stevens se retirou da roda, reconhecendo que algo especial estava se desenvolvendo entre os dois brasileiros. Posteriormente, até mesmo Eric Clapton – um músico acostumado a tocar com os maiores nomes do rock mundial – se afastou.

O Espanto de Um Mestre

Testemunhas relatam que Clapton ficou literalmente paralisado, observando com expressão de espanto enquanto Gilberto Gil e Jorge Benjor criavam universos sonoros improvisados. O que ele presenciava desafiava sua compreensão musical formada no blues e no rock britânico. Consequentemente, o guitarrista reconhecia estar diante de algo radicalmente diferente e profundamente poderoso.

Ali estavam dois seres mágicos, como descreveram alguns presentes, misturando referências aparentemente incompatíveis: Bahia e Rio de Janeiro, elementos Bantu e Nagô, África ancestral e Brasil contemporâneo. Dessa forma, criavam ritmos e harmonias que só poderiam nascer daquela conexão específica, daquele momento único e irrepetível.

A Gestação do Álbum Ogum Xangô

Após aquela experiência transformadora, ficou cristalino para todos os envolvidos que desperdiçar aquela química seria um crime artístico. Gilberto Gil e Jorge Benjor precisavam registrar sua colaboração de forma mais estruturada. Assim, ainda em 1975, nasceu o projeto do álbum Ogum Xangô.

Mais Que Um Disco: Um Documento Espiritual

O título escolhido para o projeto já indicava as dimensões que aquela parceria alcançaria. Ogum e Xangô são orixás fundamentais na cosmologia afro-brasileira, representando força, justiça e transformação. Portanto, nomear o disco assim não foi acidente ou estratégia de marketing, mas reconhecimento consciente das forças ancestrais que fluíam através daquela música.

O álbum de Gilberto Gil e Jorge Benjor captura uma síntese musical complexa. Por um lado, temos a erudição harmônica de Gil, sua capacidade de transitar entre tradição e vanguarda, sua sofisticação lírica. Por outro, o swing revolucionário de Benjor, sua percussão inovadora, seu vocabulário rítmico único que reinventou o samba.

Confluência de Universos

Quando essas duas linguagens se encontraram no trabalho conjunto de Gilberto Gil e Jorge Benjor, o resultado foi algo que a música brasileira ainda não havia experimentado de forma tão completa. Não se tratava de fusão superficial ou colaboração meramente comercial. Ao contrário, era uma verdadeira integração de visões de mundo expressas musicalmente.

A Bahia de Gil trazia elementos de candomblé, capoeira, uma africanidade consciente e celebrada. Além disso, incorporava influências tropicalistas, abertura para experimentação eletrônica e diálogos com a contracultura internacional. Igualmente importante, o Rio de Benjor contribuía com seu samba-rock característico, suas batidas sincopadas únicas, sua capacidade de fazer o corpo se mover involuntariamente.

O Contexto Histórico e Político

Para apreciar completamente a colaboração entre Gilberto Gil e Jorge Benjor, precisamos situá-la em seu momento histórico. O Brasil de 1975 ainda vivia sob ditadura militar, embora o regime começasse a mostrar sinais de desgaste. Nesse cenário, a arte continuava sendo espaço fundamental de resistência e afirmação identitária.

Música Como Território Livre

Enquanto a repressão política limitava severamente a liberdade de expressão em discursos explicitamente políticos, a música oferecia brechas. Compositores desenvolviam sofisticadas estratégias de comunicação indireta, usando metáforas, referências culturais e simbolismos que escapavam à censura mais óbvia.

O trabalho de Gilberto Gil e Jorge Benjor participava dessa resistência de forma particular. Não através de letras de protesto direto, mas pela afirmação orgulhosa de uma identidade cultural afro-brasileira. Consequentemente, celebrar orixás, ritmos africanos e a ancestralidade negra era, em si, um ato político significativo.

Dois Exilados, Duas Jornadas

Tanto Gil quanto Benjor haviam experimentado formas de exílio. Gil literalmente, forçado a deixar o país pela repressão. Benjor de maneira mais sutil, mas igualmente real, enfrentando o racismo estrutural que dificultava o reconhecimento pleno de artistas negros no Brasil. Portanto, seu encontro também representava uma reunião de experiências de marginalização superadas através da excelência artística.

A Química Musical Inexplicável

O que fez a parceria entre Gilberto Gil e Jorge Benjor funcionar tão bem vai além de competência técnica. Ambos os músicos já eram virtuoses antes de colaborarem. Entretanto, virtuosismo individual não garante química coletiva. Nesse caso específico, elementos intangíveis se alinharam perfeitamente.

Improvisação Como Filosofia

Uma característica fundamental do trabalho conjunto é sua natureza improvisacional. Mesmo nas faixas mais estruturadas, percebe-se espaço para espontaneidade, para diálogos instrumentais não totalmente planejados, para surpresas que emergem do próprio processo de tocar junto.

Essa abordagem reflete influências múltiplas: a jam session jazzística, a roda de samba tradicional, o terreiro de candomblé onde música e espiritualidade se entrelaçam. Além disso, demonstra confiança mútua absoluta – apenas músicos que confiam completamente uns nos outros podem improvisar com tanta liberdade.

Quando Técnica Encontra Transe

Testemunhas da gravação descrevem sessões onde a fronteira entre trabalho e ritual se dissolvia. Momentos em que a técnica musical dava lugar a estados alterados de consciência, onde Gilberto Gil e Jorge Benjor pareciam canalizar forças maiores que si mesmos.

Principalmente, essa dimensão espiritual não era performática ou artificial. Emergia naturalmente de dois artistas profundamente conectados com tradições religiosas afro-brasileiras, que compreendiam música não apenas como entretenimento, mas como tecnologia ancestral de transcendência.

O Legado Duradouro

Décadas após seu lançamento, o álbum Ogum Xangô de Gilberto Gil e Jorge Benjor continua influenciando gerações de músicos. Sua relevância não diminuiu – se algo, aumentou conforme novos públicos descobrem a obra e reconhecem sua contemporaneidade.

Influência em Gerações Posteriores

Artistas contemporâneos frequentemente citam a colaboração entre Gilberto Gil e Jorge Benjor como referência fundamental. A forma como integraram tradição e inovação, ancestralidade e modernidade, sofisticação e groove, continua sendo estudada e emulada.

Além disso, o disco antecipou tendências que só se consolidariam décadas depois: a valorização explícita de raízes africanas na música brasileira, a fusão consciente de gêneros, o entendimento de colaboração musical como encontro espiritual além de empreendimento comercial.

Tempo Rei e Encontros Contemporâneos

Não por acaso, a turnê Tempo Rei de Gilberto Gil incluiu Jorge Benjor entre os convidados especiais. Principalmente no show do Rio de Janeiro, onde os dois se reencontraram no palco décadas depois de gravarem juntos. Essa escolha demonstra que ambos reconhecem aquela parceria como momento definidor de suas trajetórias.

O público presente nesse reencontro testemunhou que a magia persiste. A química entre Gilberto Gil e Jorge Benjor não foi circunstancial ou limitada aos anos 1970. Ao contrário, amadureceu, aprofundou-se, ganhou novas camadas de significado com o passar das décadas.

Conclusão: Quando a Música Transcende Explicações

A colaboração entre Gilberto Gil e Jorge Benjor permanece como testemunho de um momento único na história da música brasileira. Um momento em que circunstâncias políticas, encontros casuais e química inexplicável se alinharam para criar algo extraordinário. Mais do que isso, o álbum Ogum Xangô prova que grandes colaborações artísticas não podem ser totalmente planejadas ou controladas – precisam de espaço para acontecer organicamente.

A história de como Eric Clapton ficou assombrado ao presenciar Gilberto Gil e Jorge Benjor tocando juntos não é mera anedota. Revela uma verdade profunda: existem dimensões musicais que transcendem formação técnica, tradição específica ou mesmo genialidade individual. São dimensões que só emergem quando pessoas certas se encontram no momento certo, abertas para canalizarem algo maior que suas próprias capacidades.

Portanto, essa parceria não é apenas um capítulo da história musical – é um portal para compreender como a música brasileira alcança sua grandeza. Através da mistura corajosa, da abertura para o improvável, da conexão com forças ancestrais, da recusa em se limitar por fronteiras artificiais entre gêneros ou estilos.

Décadas depois, quando ouvimos essas gravações, ainda podemos sentir a energia daquele encontro. Ainda podemos compreender por que até mesmo um mestre como Eric Clapton reconheceu estar diante de algo especial. E ainda podemos nos inspirar no exemplo de dois gênios que, ao se encontrarem, criaram algo infinitamente maior que a soma de seus talentos individuais.

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